segunda-feira, 1 de outubro de 2007

História das Três Esposas de Ismail Pasha

Grande senhor era Ismail Pasha! Temido e respeitado, levantando-se
quando o sol se deitava e tornando a recolher-se com a aurora, Ismail
conseguia o que outros vizires não logravam conseguir esfalfando-se
pelos dias inteiros; sua voz rouca, sussurrando no ouvido do Califa de
Córdoba, podia fazer levantar exércitos, enviar embaixadores aos reis
infiéis além de Jerez, lançar impostos sobre o povo, derrubar as
cabeças dos favoritos sob a cimitarra do carrasco.

Magro, moreno e impassível, Ismail percorria os corredores do serralho
ou da Grande Mesquita, e não havia um só olhar que, por ousadia ou
atrevimento, sustentasse o seu, onde vivia uma sabedoria antiga, velha
de quatro séculos. Era astuto como a serpente do Paraíso. Mudara seu
nome inúmeras vezes, vira califas, vizires e dinastias caírem e não
perdera absolutamente nada de seu poder e de sua riqueza. Se sofria um
revés, este não tardava em mudar-se, como por favor especial de Alá, o
Todo-Poderoso, em sucesso maior do que havia sido a derrota; mas
Ismail sabia que não fôra a intervenção de Alá que se fizera sentir, e
sim sua própria argúcia, seu próprio poder.

Todavia, apesar de tudo, Ismail não era um rei, um califa ou um
príncipe. As galas do poder jamais o haviam atraído, nem mesmo durante
seus dias mortais. Já naquele tempo, aprendera que os governantes e os
reinos caem, mas o verdadeiro poder é eterno, e um homem inteligente
pode segurar suas rédeas por um tempo infinito, se se mantiver nas
sombras, aconselhando, cochichando jogando os outros homens uns contra
os outros, como num jogo de xadrez. Quando seu sangue fôra substituído
pelo de seu senhor, este tivera pouca coisa a ensinar-lhe. Ismail
Pasha reinava sobre os reis.

Era imensamente rico. Vivia em uma mansão circundada por muitos
jardins e fontes, na bela Córdoba, a Pérola das Espanhas. Seu harém
também era bem fornido; de todas as terras, eram trazidas escravas e
concubinas para sua carícia. Essas mulheres pertenciam a todas as
raças, todas as cores e crenças. Pareciam flores vivas, formando um
jardim perfumado, no qual o poderoso Ismail ia esquecer suas
canseiras. Duas delas, porém, eram suas favoritas, não porque fossem
mais belas ou seus lábios fossem mais doces que as demais, mas por
pertencerem à mesma espécie que ele, a dos seres fascinantes e
sinistros que vivem à noite, nutrindo-se de forma cruel, temendo a luz
e vicejando nas trevas.

Uma delas havia sido trazida ao harém pelo próprio Ismail, que
retornava de uma de suas viagens secretas, de propósitos obscuros, à
terra dos francos, para além dos Pirineus. Dizia-se que ali derrotara
o senhor da mulher e este, em troca de sua vida, tivera de
entregar-lha. Outros diziam que Ismail não o poupara, absolutamente;
que o matara, trazendo a moça como espólio de guerra. Ela, por sua
vez, não negava nem afirmava nenhuma destas versões, simplesmente
negando-se a tocar no assunto. Era muito altiva e fria, loura como as
mulheres nórdicas, alta e esbelta. Seus olhos azuis, claros como o
gelo, fitavam as outras com um orgulho que nada pudera domar. Ismail
gostava de compará-la mentalmente a uma grande tigresa toda branca (se
tal coisa existisse) que deitava-se a seus pés ronronando suavemente,
aparentemente dócil, mas ainda perigosa, ainda orgulhosa. E respeitava
isso e amava-a exatamente por isso.

A outra, pelo contrário, era mais doce, mais tratável, de uma beleza
mais suave. Vinha do norte de Espanha, da Galícia, onde as torres de
Compostela apunhalavam os céus, atraindo multidões de infiéis. Embora
pálida, tinha os cabelos escuros, ainda que não negros, e uns olhos
verdes acariciadores, a pele macia , a boca pequena. Ismail sentia por
ela tanta ternura quanto era capaz; e ela, indolente por natureza,
aparentemente rendia-se a tudo, procurava agradá-lo como lhe fosse
solicitado.

Nem é preciso dizer que, na competição feroz pelos favores de seu amo,
não se entendiam as duas favoritas de Ismail Pasha. Pelo contrário,
odiavam-se com um ódio candente, e, enquanto as concubinas mortais,
que as temiam e não teriam desafiado, digladiavam-se entre si pelos
restos da afeição dele, as duas jogavam entre si, pelo mesmo motivo,
um jogo tão acirrado quanto o outro e mais mortal. E, se não podiam
utilizar-se dos expedientes do veneno e do punhal, tão comuns em
outros serralhos, sua imaginação sugeria-lhes outros meios, tão
terríveis que sequer podem ser mencionados. Ainda não se tinham
atrevido a colocá-los em prática, por temor do que faria Ismail; mas
poder-se-ia prever que, mais cedo ou mais tarde, o estado da coisas
tornar-se-ia insuportável para uma delas, que então, desferiria o
golpe final.

Foi neste tempo que Ismail veio ao harém, trazendo pela mão uma nova
esposa; e também esta da raça fascinante e sinistra e cruel, que teme
a luz e viceja nas trevas.





Era uma morena de andar deslizante, ainda mais lânguida que a
galiciana, com olhos negros líquidos e uma massa de cabelos como as
asas dos corvos a coroar-lhe a fronte. Chamava-se Kadidja e havia sido
ofertada a seu senhor por um potentado egípcio com quem este mantinha
aliança.

Como seria de se esperar, o desafeto entre as três esposas de Ismail
Pasha tornou-se mútuo. No tempo em que viveram as três juntas,
disputando o favor de seu amo, sua discórdia pareceu crescer de noite
a noite. E, como eram as favoritas, cada qual tornou-se o centro de
uma espécie de coalizão das outras mulheres, que esperavam aliar-se à
vencedora da contenda e assim auferir vantagens para si próprias. O
harém transformara-se como que numa praça de guerra.

Então, numa noite escura, quando o vento mediterrâneo varria as
planícies com seu sopro seco, Ismail Pasha visitou o harém, disposto a
conceder-se uma rara noite de prazer. E, embora todas as favoritas,
escravas e concubinas porfiassem por agradá-lo, ansiava por sossego,
calma e ternura; e, desprezando as mulheres mortais, desdenhando da
altivez da francesa loura e do amor ardente da egípcia, escolheu a
pequena galiciana de olhos verdes e pele macia. Com ela passou a noite
inteira e tanto se agradou de suas carícias que pela madrugada, antes
de deixá-la, disse:

- Tu hoje me agradaste. Estavas mais bela que as rosas que tua estirpe
adotou por emblema, e teus lábios ensangüentados lembravam-me um sabre
a reverberar no calor do combate.

E acrescentou:

- Desejas alguma recompensa?

Ora, a favorita de Ismail amava a beleza acima de qualquer coisa.
Assim, imediatamente relanceou os olhos sobre um bracelete que seu
senhor usava, todo de ouro, cravejado de grandes esmeraldas. E
respondeu:

- Dai-me vosso bracelete de ouro para que o use e me lembre de vós e
do quanto vos agradei, e me alegre.

Ele acariciou seu rosto.

- Sabes o que estás a pedir-me? Esta jóia me é preciosa, pois vem de
um tempo em que eu não pertencia à Família, e foi-me dada por alguém
que amei e que perdi.

Mas ela arqueou o corpo seminu, oferecendo-se a ele.

- Dai-me o bracelete - pediu - e juro que saberei guardá-lo bem. Pois
se ele me pertence e eu pertenço a vós, continuareis a ser seu dono,
no final das contas.

Ismail não queria satisfazer-lhe a vontade; mas tanto ela insistiu,
argumentando que ao perguntar-lhe o que desejava por recompensa não
fizera ele nenhuma ressalva, que viu-se por fim obrigado a atendê-la e
entregar-lhe o que desejava. Ao fazê-lo, porém, disse:

- Apanhaste-me pela minha palavra, obrigando-me a dar-te um objeto que
me é caro; toma, portanto, cuidado com ele, como eu próprio tomaria,
pois muito me desgostaria se algo lhe acontecesse, à última lembrança
que me restou de um tempo em que fui feliz.

E a favorita de Ismail, a pequena galiciana de olhos verdes
prometeu-lho, mas distraídamente, pois estava como que abismada na
contemplação de seu novo tesouro; tivesse prestado mais atenção e
teria percebido, talvez, o ruído de passos leves no corredor, quase
tão inaudíveis quanto o deslizar de uma serpente.







Tempos depois, um viajante, um artista chegou a Córdoba, tendo sido
bem recebido na cidade. Vinha, dizia, aprender a Arte e a Ciência dos
muçulmanos, e toda a gente deu-lhe crédito, pois é sabido que os
bárbaros infiéis são muito inferiores aos verdadeiros crentes nestas
matérias. E, ainda que recusasse todos os convites que lhe eram feitos
durante o dia, apresentou-se quase que imediatamente na casa de Ismail
Pasha, requerendo-lhe permissão para habitar a cidade. E Ismail Pasha,
vendo que ele parecia respeitar as Tradições de sua raça, que são mais
velhas que a Lei dos homens e dos Profetas, concedeu-lha prontamente e
adotou-o como seu protegido. E o forasteiro escreveu em sua honra e da
de Córdoba, a Pérola das Espanhas, tantos versos tão belos que
pareciam coisa do Céu; e cantava-os à noite, para o deleite de Ismail
Pasha e de seus convidados, enquanto as damas do harém observavam a
cena do alto de seus balcões encobertos com treliças.

Foi nesta época que o presente de Ismail Pasha à sua favorita, a
galiciana de olhos verdes, subitamente desapareceu. A pequena,
apavorada, temendo o castigo de seu senhor, procurou-o, ou fingiu
procurá-lo, como disseram mais tarde as demais mulheres, por toda a
parte. Debaixo do olhar escarninho de suas rivais, varreu cada canto
do harém, e não só por medo de Ismail Pasha, mas porque também amava
sua jóia. Não conseguiu, porém, encontrá-la, e teve de suportar a ira
dele, que mandou açoitá-la como uma serva e prendê-la por dez dias na
escuridão, nunca mais chamando-a à sua presença depois disso. Tão
completa foi sua desgraça que mesmo as concubinas mortais passaram a
tratá-la sem respeito algum. Quanto às outras duas favoritas,
atormentaram-na tanto que ela passou a isolar-se, caminhando à noite
pelo jardim, a chorar, mergulhada na mais completa melancolia, só
tornando a recolher-se quando o sol estava prestes a levantar-se.

Foi numa destas noites que Ismail, contemplando distraídamente o
jardim, viu, ou teve a impressão de ver, dois vultos que confabulavam
enlaçados sob uma romãzeira.







Não se passou muito tempo depois disso quando, numa noite de Lua Nova,
logo depois de o muezim ter feito soar sua voz no alto do minarete,
Ismail Pasha recebeu um pedido urgente para que fosse ao harém. Lá
chegando, encontrou suas duas esposas, a francesa loura e Kadidja, a
egípcia, a esperá-lo.

- Chamamo-vos para cumprir um dever - disse a primeira - que é o de
velar por vossa honra e não permitir que sejais enganado em vossa
própria casa. Sois traído senhor!

- Por quem? - perguntou Ismail Pasha, ainda longe de conceder-lhe
crédito, mas já um pouco apreensivo, pois não havia nada que prezasse
mais que a própria honra.

- Por aquela bruxa de olhos verdes - respondeu a loura - que, não
sendo mais chamada ao leito de meu senhor, resolveu manchá-lo,
entregando-se a toda a espécie de vagabundos e forasteiros.

Ismail Pasha sentiu-se aliviado e sorriu, pois bem sabia o quão pouco
suas favoritas se estimavam.

- E quem te contou semelhante fábula? - perguntou.

- Ninguém nos contou nada - cortou Kadidja, a egípcia. - Vimo-lo com
nossos próprios olhos, como também meu senhor poderá ver se prestar
atenção ao pulso esquerdo daquele poeta, aquele cantor que acolhestes
em vossa própria casa, abrigando uma serpente em vosso seio.

Ismail ficou silencioso por certo, tempo, meditando. Por fim, ergueu a
cabeça, e em seu olhar havia uma expressão resoluta, como quando, há
séculos atrás, atirava-se no maior calor das batalhas e fazia fugir
diante de si as hordas dos godos.

- Vamos - disse ele. E, seguido por suas duas favoritas, encaminhou-se
para os balcões cobertos de treliças dos quais as mulheres do harém
costumavam contemplar a função no salão.

Lá embaixo, o cantor afinava seu instrumento. A assistência, atenta,
parecia suspensa de seus lábios. E deles brotou a mais linda de todas
as canções, que falava de um jardim ao luar, de uma entrevista com sua
amada sob a romãzeira; e, estremecendo de espanto e de fúria, Ismail
pôde ver no pulso dele, que se descobrira, o bracelete e ouro e
esmeraldas, a jóia que entregara à sua favorita galiciana naquela
noite em que tanto a amara; e lembrou-se de ter divisado os vultos
abraçados no jardim, sob a romãzeira.

Percebendo que a fúria lhe subia à cabeça, sussurrou-lhe a egípcia com
voz suave:

- Não deixeis que a cólera vos turbe o pensamento. Se ela vos traiu,
entregando-se ao forasteiro e presenteando-o com vossa jóia, deve ser
punida... mas não na presença dos mortais. Vós sereis o juiz, nós as
testemunhas... fazei com que vo-la tragam imediatamente e
interrogai-a!

Ismail tinha o tino obscurecido pela vergonha e pela ira.

- Sim - disse com voz surda - Nos meus aposentos! E imediatamente!
Esta noite todas vós ireis aprender o quanto custa trair vosso amo!

E, tendo chamado os guardas do harém e dado-lhes suas ordens,
encaminhou-se para seus aposentos com passo duro, sempre seguido por
suas duas favoritas, Kadidja, a egípcia, e a francesa loura de olhos
claros como o gelo.

Como que um sopro de desgraça percorreu o serralho quando, pouco
depois, a pequena galiciana de olhos verdes foi arrastada pelos
guardas até o aposento de seu senhor, onde este já se encontrava com
as outras duas. Embora não soubessem de que se tratava, as odaliscas
encolhiam os ombros, subitamente geladas, pois nada de bom pressagiava
a atitude dos guardas do harém, e as lágrimas nos olhos da antiga
favorita. Esta foi arrastada, meio desmaiada, até a presença de
Ismail, e as portas de ébano do aposento fecharam-se com clangor;
sobre elas foram corridos pesados ferrolhos; e permaneceram trancadas
por muitas horas, até que o sol se ergueu e tornou a deitar-se. Só
então, tiveram coragem para bater, chamar, e, finalmente, arrombá-las.





Horas depois, naquela mesma noite fatídica, três sombras embuçadas
contemplavam a cidade, do alto de uma colina próxima.

- Muito poderoso era Ismail Pasha! - disse a primeira sombra, Kadidja,
a egípcia. - Se uma, ou mesmo duas de nós o tivessem atacado, com
certeza haveríamos de falhar. Juntas, porém, fomos mais fortes.

- E como a honra é a herança de meu clã e minha linhagem - disse a
segunda sombra, a francesa loura, de olhos azuis claros como o gelo -
o assassinato traiçoeiro de meu senhor não devia ficar impune, ainda
que me custasse a liberdade e o pudor. Agora que o vinguei, posso
retornar à minha terra e aos meus.

- Mas não sozinha... - disse a terceira sombra, a da galiciana de
olhos verdes, ajoelhando-se a seus pés - Pois a herança de minha
linhagem é a paixão e o amor pela Beleza. Fiz o que fiz para seguir-te
e ser só tua... leva-me contigo!

"Mas a herança da minha linhagem é a morte e o assassinato", pensou a
egípcia "e elas exigiram , as ignorantes, ser as primeiras a
drená-lo. Eu fui a última, eu suguei sua essência... e cumpri minha
missão fielmente, em nome de Alá, tornando-me mais e mais próxima de
Khayim, senhor de todos nós." Mas não disse nada.



Conta-se que ao arrombarem as pesadas portas de ébano dos aposentos de
Ismail Pasha, seus guardas e servidores acharam apenas um punhado de
cinzas escuras que o vento espalhava; e, embora procurassem, nunca
mais encontraram as três esposas de Ismail Pasha no interior das
muralhas de Córdoba, a Bela, Pérola das Espanhas.

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